quinta-feira, 8 de junho de 2017

Quando a palavra vem à mente: Noite Alta

Quando a palavra vem à mente.
As palavras nos chamam de repente.

NOITE ALTA


Canção da noite alta 

Menina está dormindo.
Coração bulindo.
Mãe, por que não fechaste a janela?

É tarde, agora:
Pé ante pé
Vem vindo
O Cavaleiro do Luar.
Na sua fronte de prata
A lua se retrata.
No seu peito
Bate um coração perfeito.
No seu coração
Dorme um leão,
Dorme um leão com uma rosa na boca.
E o príncipe ergue o punhal no ar:
...um grito
aflito...
Louca!


Mário Quintana





SONETO X

Noite alta. No escuro um vaga-lume
lume, na escuridão, o seu luzeiro
e faz, com seu luzir pálido e trêmulo,
mais viva a escuridão da noite alta.  

A noite é fria e longa, o ar é frio
e longo e ausente e úmido, e voejam
no ar úmido e frio as asas longas
dos pássaros ausentes noite alta.

Passos se perdem nessa noite vaga,
incertos, longos passos que se espalham
no ar ausente de tão fria noite,

que, inda passada, é para mim presente,
vaga luz, vaga-lume, asas longas,
sons de passos perdidos, noite alta.

Recife, 10.8.1963

Daniel Lima





PELA NOITE ALTA


já reparaste? pelo outono,
nas noites frias é sem lua,
- quando um silêncio de abandono
cai sobre a enorme alma da rua - 
como o beijo de luz que as janelas abertas
poem nas calçadas tristes e desertas,
faz reviver do fundo da memória,
por um milagre de magia,
um gesto morto e já olvidado,
o doce fecho de uma história,
sombra de amor, melancolia,
vago perfume do passado?...

Janelas alta noite iluminadas,
deixando adivinhar, ao crivo da cortina,
suaves palavras murmuradas
por duas bocas bem-amadas,
e a exaltação das almas postas em surdina...
Eu recordo, perdida,
longe, em um trecho azul da minha vida,
uma janela assim: 
Oásis de branca claridade
dentro da noite, a transbordar felicidade,
para o mistério de um jardim...

E o fantasma da minha mocidade
só, debruçado junto a mim...


Alceu Wamosy





De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. Deve ser noite alta. Acendo a luz da cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. E a cabeça clara e lúcida. Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às duas da noite e que não me maldiga. Quem?
Quem sofre de insônia? E as horas não passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que preciso perder os quatro quilos que aumentei com a superalimentação depois do incêndio. E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão clara. Não, não se pensa. Sente-se.
Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio, quem sabe são cinco horas. Nem quatro chegaram. Quem estará acordado agora? E nem posso pedir que me telefonem no meio da noite pois posso estar dormindo e não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita? Ninguém me perdoaria o vício. Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o quê? O nada. E o telefone à mão.
Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo.
As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.
— Clarice Lispector, no livro “A descoberta do mundo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999